Posicionamento da ABEM ao Projeto de Lei do Senado nº 165/2017 – Exame Nacional de Proficiência em Medicina

Posicionamento da ABEM ao Projeto de Lei do Senado nº 165/2017 – Exame Nacional de Proficiência em Medicina

 

 

Tramita no Senado Federal o Projeto de Lei (PLS) nº 165/2017 que visa instituir a realização de exame nacional de proficiência – o “exame de ordem” – para o exercício da medicina no Brasil. O projeto é de autoria do senador Pedro Chagas (PSC/MS)1 e conta com pareceres da Comissão de Assuntos Sociais (CAS)2 e da Comissão de Educação, Cultura e Esporte (CE)3. A proposta sugere que a regulamentação e coordenação do exame seja de responsabilidade do Conselho Federal de Medicina (CFM)1,3.

A necessidade de “garantir a boa formação do profissionais que atuam no País”1, sobretudo no cenário de “proliferação indiscriminada de cursos de Medicina nos últimos anos”1 configura-se como a principal justificativa para o Projeto de Lei, segundo opinião do autor do PLS e do relator do parecer da CE3. Ainda na justificação do PLS, são citadas experiências internacionais e os exames da Ordem dos Advogados do Brasil  (OAB) e do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP), que vem realizando o exame há 13 anos no país.

A Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM), entidade que representa estudantes, professores e escolas de Medicina e tem trabalhado para o desenvolvimento da formação dos médicos brasileiros no país há 56 anos, é contrária ao PLS nº 165/2017 pelos seguintes motivos:

 

  1. O exame de ordem não garante a boa qualidade da formação dos estudantes. A qualidade da formação médica depende de um conjunto de dimensões além do corpo de estudantes. Aspectos relacionados à gestão e projetos pedagógicos dos cursos, ambiente e infraestrutura de ensino (bibliotecas, laboratórios e hospitais de ensino) e corpo docente são igualmente determinantes da qualidade do ensino4. Reduzir a avaliação à dimensão discente é ignorar a complexidade da formação médica e desresponsabilizar o governo em seu papel republicano de garantir a qualidade do ensino por meio de processos regulatórios (autorização e regulação dos cursos).
  2. O caráter terminal do exame de ordem penaliza apenas o estudante. Em exames de certificação, os estudantes devem ter a qualidade da avaliação assegurada (especialmente, validade, confiabilidade e credibilidade)5. Tais exames demandam estrutura de organização complexa e recursos financeiros, com custos que geralmente recaem aos examinados. Mesmo em cenários bastante otimistas, em que os exames de certificação garantam uma adequada avaliação de conhecimentos, habilidades, atitudes e cidadania dos estudantes, com validade e confiabilidade testadas, um exame terminal (ao final do curso), sem mecanismos de recuperação para os estudantes reprovados, gera pouco ou nenhum efeito educacional e catalítico às escolas5.
  3. A criação de um exame de certificação terminal desarticulado com outras formas de avaliação dos cursos desresponsabiliza as escolas médicas de sua obrigação de formar profissionais necessários e adequados para a população e para o Sistema Único de Saúde (SUS). Para evitar a penalização de estudantes provenientes de cursos de má qualidade, os sistemas de certificação de países que exigem aprovação em exames terminais (ao final do curso) para atuação médica (Canadá e Estados Unidos) são articulados com sistemas de acreditação de escolas médicas (Liaison Committe on Medical Education – LCME – e Committee on Accreditation of Canadian Medical Schools – CACMS)6,7. Na Alemanha8, não há articulação do sistema de certificação a outros mecanismos de avaliação dos cursos, mas o sistema é composto de avaliações seriadas (três etapas ao longo do curso de medicina), o que pode favorecer o caráter educacional, formativo e catalítico do exame aos estudantes e escolas.
  4. A designação de uma entidade única como responsável pela coordenação do exame de proficiência pode favorecer posições corporativas e comprometer a credibilidade da avaliação. Os exames de certificação das experiências internacionais são regulamentados por comitês com representatividade de vários setores ligados à formação médica, inclusive estudantes e comunidade6-10. No Chile, o Examen Único Nacional de Conocimientos de Medicina (EUNACOM) está sob reponsabilidade única da Associação de Faculdades de Medicina do Chile (ASOFAMECH) e tem sofrido críticas severas relacionadas à transparência do processo avaliativo9.
  5. À semelhança da experiência nacional com o exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o exame poderá favorecer o aparecimento e expansão do mercado de cursos preparatórios2. Tal fenômeno já é observado nos processos seletivos dos programas de Residência Médica e tem levado estudantes a buscarem uma “formação paralela”, muitas vezes em detrimento às atividades curriculares obrigatórias de seus cursos11.

A ABEM reconhece a necessidade de avaliar os profissionais que cuidam da saúde e da vida dos cidadãos brasileiros. A preocupação com a formação de médicos que atendam aos princípios do profissionalismo e de segurança do paciente tem sido foco das ações da ABEM, principalmente no cenário atual de abertura indiscriminada de escolas médicas. Até o momento, somam-se mais de 30 mil vagas de primeiro ano e 318 escolas, muitas em condições precárias de funcionamento.

Diante do exposto, a ABEM, em seu papel de contribuir para a melhoria da formação médica do país, e em consonância com padrões internacionais de segurança do paciente, defende:

  1. O cumprimento e o aprimoramento dos dispositivos da Lei nº 12.871/2013 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação de Medicina (2014), no que tange ao processo de avaliação seriada do estudante de medicina, de caráter formativo, sem ônus financeiro para o estudante;
  2. À semelhança da Comissão Interinstitucional de Avaliação de Escolas Médicas (CINAEM)12, a criação de comissão com representatividade de vários setores ligados à formação e prática médica, inclusive da sociedade civil, para a coordenação de um processo avaliativo que atenda às premissas supracitadas;
  3. O papel do Ministério da Educação de promover processos regulatórios (autorização, reconhecimento e regulação) dos cursos de medicina;
  4. A existência de sistemas de avaliação externa e acreditação dos cursos de medicina brasileiros que sejam norteados por práticas avaliativas baseadas em evidências.

Sabemos que a efetivação de uma proposta de avaliação nacional válida e confiável, de caráter formativo a 30 mil estudantes de medicina, articulada à avaliação de mais de 300 escolas é tarefa complexa. No entanto, a experiência acumulada por professores, estudantes, conselhos, associações e entidades governamentais com processos como a CINAEM, o Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior (SINAES)13, o teste do progresso14, a Comissão de Avaliação de Escolas Médicas (CAEM)15 e o Sistema de Acreditação de Escolas Médicas (SAEME)16 nos faz acreditar na capacidade de superarmos esse desafio. Para tal, a ABEM fazendo valer sua missão, experiência e expertise coloca-se à disposição para a construção coletiva dessa proposta.

 

Sigisfredo Luís Brenelli
Diretor Presidente da ABEM

 

 

Referências

  1. Projeto de Lei do Senado nº 165/2017. Altera a Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, que dispõe sobre os Conselhos de Medicina e dá outras providências, para instituir o exame nacional de proficiência em Medicina (2017) [capturado 04 jun. 2018]. Disponível em:https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=5311273&disposition=inline
  2. Parecer da COMISSÃO DE ASSUNTOS SOCIAIS, em decisão terminativa, sobre o Projeto de Lei do Senado nº 165, de 2017, do Senador Pedro Chaves, que altera a Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, que dispõe sobre os Conselhos de Medicina e dá outras providências, para instituir o exame nacional de proficiência em Medicina (2017) [capturado 04 jun. 2018]. Disponível em:https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7163384&disposition=inline
  3. Parecer perante a COMISSÃO EDUCAÇÃO, CULTURA E ESPORTE, em decisão terminativa, sobre o Projeto de Lei do Senado nº 165, de 2017, do Senador Pedro Chaves, que altera a Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, que dispõe sobre os Conselhos de Medicina e dá outras providências, para instituir o exame nacional de proficiência em Medicina (2018) [capturado 04 jun. 2018]. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7729068&disposition=inline
  4. World Health Organization, World Federation For Medical Education. WHO/WFME Guidelines for Accreditation of Basic Medical Education. Geneva: WHO, 2005.
  5. Norcini J, Anderson B, Bollela V, Burch V, Costa MJ, Duvivier R et al. Criteria for good assessment: Consensus statement and recommendations from the Ottawa 2010 Conference. Med Teach. 2011;33:206–214.
  6. Medical Council of Canada [Internet]. Ottawa: Medical Council of Canada; c2018 [capturado 04 jun. 2018]. Disponível em: https://mcc.ca/examinations/mccee/
  7. National Board of Medical Examiners [Interntet]. Philadelphia: National Board of Medical Examiners; c2018 [capturado 04 jun. 2018]. Disponível em: http://www.nbme.org/students/usmle.html
  8. Institut für medizinische und pharmazeutische Prüfungsfragen (IMPP) [Internet]. Institute for Medical and Pharmaceutical Examination Questions; c2014 [capturado 04 jun. 2018]. Disponível em: http://www.impp.de/
  9. Machado JCS. El EUNACOM: una discusión necesaria sobre calidad y estandarización. Cuad. Méd-soc (Santiago de Chile). 2013;53(1):42-48.
  10. McManus IC, Wakeford R. PLAB and UK graduates’ performance on MRCP(UK) and MRCGP examinations: data linkage study. BMJ. 2014;348:g2621. doi: 10.1136/bmj.g2621
  11. Hamamoto-Filho PT, Bicudo-Zeferino AM. Cursinhos Preparatórios para Residência Médica: Reflexões sobre Possíveis Causas e Consequências. Rev Bras Educ Med. 2011; 35(4):550-556.
  12. Stella RCR, Campos JJB. Histórico da construção das Diretrizes Curriculares Nacionais na graduação em medicina no Brasil. Cadernos ABEM. 2006;2: 73-77.
  13. Gontijo ED, Senna MIB, Lima LB, Duczmal LH. Cursos de Graduação em Medicina: uma Análise a partir do Sinaes. Rev Bras Educ Med. 2011; 35(2):209-218.
  14. Sakai MH, Ferreira-Filho OF, Almeida MJ, Mashima DA, Marchese MC. Teste de progresso e avaliação do curso: dez anos de experiência da medicina da Universidade Estadual de Londrina. Rev Bras Educ Med. 2008;32(2): 254-263.
  15. Lampert JBarbosa, Aguilar-da-Silva RH, Perim GL, Stella RC de Rosa; Abdalla, IG et al. Projeto de avaliação de tendências de mudanças no curso de graduação nas escolas médicas brasileiras. Rev Bras Educ Med. 2009; 33(supl.1):5-18.
  16. Conselho Federal de Medicina [Internet]. Brasília: Portal Médico; c2010 [capturado 04 jun. 2018]. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=26622:2016-12-07-17-55-06&catid=3

 

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